POLÍTICA
PRIVATIZAÇÃO
Pessoas avançadas, ligadas ao mundo digital, experimentam uma alergia natural diante da Esquerda política. Isto é, ninguém pode ser de vanguarda, posicionado com o novo, ninguém pode ser jovem, e ao mesmo tempo manifestar simpatias para com o posicionamento político da Esquerda. Isto é essencialmente lúcido depois da derrocada do universo socialista em fins dos anos 80, e radicalmente verdadeiro em se tratando de pessoas ligadas ao Mundo Digital, absolutamente conscientes do início da nova era que estamos vivenciando. Estas pessoas, sejam elas analistas de sistemas, hackers, simples micreiros de fins-de-semana (ou exatamente você, cibernauta que acessa agora esta Página) já não ignoram que o avanço tecnológico da computação está inserido no contexto do trabalho em rede e dos meios dinâmicos das telecomunicações. E aí, o progresso tecnológico e a acessibilidade aos bens estão visceralmente conectados ao esquema das Privatizações - viabilizáveis pela política Liberal (não "neo-liberal", como inventa a retórica esquerdista) e viabilizadoras do estágio cilivizatório Globalizado.
Sabendo-se que a privatização das telecomunicações no Brasil, na segunda metade dos anos 90, significou, entre outras vantagens, a oportunidade da saudável invasão das tecnologias de voz (Computer Telephony Integration, voz sobre Frame Relay, voz sobre IP); da exploração da infra-estrutura de cabeação, de serviços trunking (Banda A celular), de acesso remoto, atendimento e suporte a clientes; do oferecimento de serviços de redes virtuais privadas (VPNs), video on demand (VoD), acesso discado à Internet via cable modem; do lançamento da família de centrais telefônicas e cartões para telefones móveis com a tecnologia GSM, que suporta processamento de serviços em multimídia; fica-se a perguntar se um Estado (ou uma orientação política) que intentasse "rever" as privatizações do setor (proposta notória da Esquerda) não teria como próximo passo a construção de um muro (tipo o que havia em Berlim) que o isolasse do resto do mundo.
Se alguém aí ainda acha que pode continuar a se ver como jovem, sem abandonar o ranço de ideologias voltadas para o Século 19 (marxismo, comunismo, socialismo, etc...), e a simpatia por governos que re-editam o mofo dos estilos fascistóides (nacionalismo xenófobo, visão feudalista da economia, partidarização da burocracia e das corporações militares) é bom assumir uma coerência, começando por trocar seu Pentium por uma Olivetti portátil ou uma pena de ganso.
GLOBALIZAÇÃO E LIBERALISMO
Na trilha sonora para o filme Batman & Robin, a banda Smashing Pumpkins pergunta:
Is it bright where you are
Have the people changed?
E, no momento em que no Brasil ainda se vota na Esquerda, poderíamos levar a mesma pergunta às novas figuras no poder. Todavia, se a teoria na prática é outra, se o discurso muda quando a Esquerda assume o poder, o esquerdista espírito de contradição para negar a prática (real) vê-se na contingência de uma mudança regressiva para o ideal(ismo) – um resultado que, de novo, nos remete à banda Smashing Pumpkins, ou ao título que deram à trilha daquele filme: The End is the Beginning is the End...
Senão, leiamos o discurso intelectualizado que vai sendo publicado.
Paul Singer, por exemplo, professor titular na USP e ex-secretário municipal de Planejamento de São Paulo, argumenta (em Globalização e Desemprego – diagnóstico e alternativas; Editora Contexto; SP; 1998) que duas concepções básicas polarizam o debate político e a investigação científica há mais de um século: o individualismo (que desemboca naturalmente no liberalismo, o qual, para o autor, está sendo reeditado sob o signo da globalização) e o estruturalismo (cujas modalidades, marxismo e keynesianismo, o mesmo autor reconhece, estão em ocaso).
De um lado, o liberalismo clássico via a liberdade e a igualdade como importantes, e lutou contra sistemas tradicionais de privilégios, que sufocavam a liberdade individual e instituíam a desigualdade entre diferentes grupos sociais. O liberalismo atual, por sua vez, luta contra políticas redistributivas mediante tributação progressiva e despesas sociais, que constituem uma ameaça às liberdades individuais.
De outro lado, no que toca ao paradigma marxista, Singer vislumbra-o desfazendo-se de alguns antigos fundamentos (a teoria da luta de classes; capital versus trabalho; o destino dos indivíduos como determinado pela sua origem de classe; funções do mercado como melhor cumpridas pelo planejamento centralizado; o socialismo, ou comunismo, como sociedade na qual a exclusão social está completamente ausente). Porém, ao mesmo tempo continua a sustentar que o potencial de liberação da Terceira Revolução Industrial somente pode se tornar real através da luta política daqueles que têm a ganhar com ela; e que as conquistas sociais, resumidas sob o conceito de estado de bem-estar social, não podem ser abandonadas pelos benefícios do livre comércio.
Já o paradigma keynesiano, cujos seguidores latino-americanos são conhecidos como desenvolvimentistas, parece haver se despojado de teorias segundo as quais o mercado internacional, estando dominado pelas nações avançadas, está viesado contra os exportadores de produtos primários. No entanto, esta mesma ala continua enxergando as relações entre Norte e Sul como antagônicas, sugerindo que o Sul passe a contar consigo mesmo e acautelar-se contra a "apressada" integração econômica em blocos regionais dominados por nações avançadas.
Servida desta maneira a mesa das teorias por Singer, ou dos comportamentos políticos reificados à teoria, deixa-se no olvido as diferenças entre o real e o ideal. E, diante da distribuição maniqueísta do ideal (do teórico), o autor não chega a constranger-se ao propor um terceiro prato, ou terceira via de salvação: "Não é pecado misturar concepções, combinar elementos de uma e de outra para alcançar uma visão equilibrada do mundo... Mesmo os que se inclinam ao individualismo dificilmente podem ignorar que a pobreza e a exclusão social – a perda do acesso à divisão social do trabalho e de seus produtos – cassam os direitos individuais de suas vítimas. Por outro lado, os que estão próximos do estruturalismo não desconhecem que a desejável garantia da inclusão social não poderá ser instituída mediante o sacrifício destes mesmos direitos.".
A "saída" de Singer é uma "Economia Solidária" – potencializadora de geração de renda e constituinte duma alternativa ao liberalismo. Sua alternativa inspira-se em projetos cooperativos (como as tradicionais colônias de Owen, os kibutzim de Israel, cooperativas em Mondragón, e o LETS – sistemas locais de emprego e comércio criados no início dos anos 80 no Canadá por Michael Linton).
E, se saltarmos aquém do artifício, onde a oposição ao real nivela à Esquerda todo posicionamento, vemos que esta (Esquerda) da utopia passou à "concepção científica" da História e daí à utopia. The End is the Beginning is the End.
Que a globalização, e o universo de produtos materiais e estímulos espirituais que ela gera, surgem de um processo real, antes que de um planejamento ideal, é uma perspectiva que nos oferece a questão do idioma global. No mundo real este se afirma cada vez mais como sendo o inglês – à despeito de sonhos antigos de uma língua universal artificial (como o Esperanto) que devolvesse os seres humanos à inocência prévia à Torre de Babel.
Que um idioma não se torna global pela facilidade do seu aprendizado, ou pelo tamanho do seu vocabulário, ou porque tenha sido veículo de grande literatura ou associado a uma grande religião, são enfoques de uma autoridade mundial no idioma inglês: David Crystal (em English as a Global Language Cambridge University Press, 1997).
Num estágio, Crystal mostra, uma língua se torna universal por uma simples razão: o poder político – especialmente militar – do seu povo. De modo que a história de uma língua universal pode ser traçada através das bem sucedidas expedições dos seus articuladores soldados ou marinheiros. "Por que o grego se tornou uma língua de comunicação internacional no Oriente Médio há mais de 2.000 anos? Não devido ao intelecto de Platão e Aristóteles; a resposta jaz nas espadas e nas lanças empunhadas pelos exércitos de Alexandre, o Grande. Por que o Latim se tornou conhecido através da Europa? Perguntem às legiões do Império Romano. Por que a língua arábica veio a ser tão largamente falada no norte da África e no Oriente Médio? Sigam a disseminação do Islã, sustentado pela força dos exércitos mouros do século oitavo. Por que o espanhol, o português e o francês atingiram as Américas, a África e o Extremo Oriente? Estudem as políticas coloniais dos reis e rainhas da Renascença, e o modo como essas políticas eram implacavelmente implementadas por exércitos e esquadras através do mundo."
Porém, se é demandada uma nação militarmente poderosa para estabelecer uma língua universal, é necessário o poderio econômico para mantê-la e expandi-la. Crystal mostra que isso sempre foi assim, porém tornou-se um fator particularmente crítico desde o começo do século 20, com o desenvolvimento econômico começando a operar em escala global, sustentado pelas novas tecnologias.
Assim, o inglês se afirmou quando o crescimento da competição industrial levou à explosão da propaganda e do marketing internacional. Foi o surgimento de outdoors, letreiros luminosos e posters carregando nomes como Ford, Kellogg, Kodak, Coca Cola... O poder da imprensa atingiu níveis inéditos, e logo era ultrapassado pelas transmissões radiofônicas (BBC, Voice of America). A tecnologia, na forma de filme (os grandes estúdios hollywoodianos a partir de 1915) e discos (divulgação do jazz e do rock 'n' roll) tiveram um impacto inevitavelmente mundial.
E desde o papel especial alocado nos procedimentos das alianças internacionais, como a Liga das Nações (criada como parte do Tratado de Versalhes em 1920) ou as Nações Unidas (que substituiu a Liga das Nações em 1945), passando pela indústria do turismo e suas facilidades através do cartão de crédito (American Express e Mastercard, principalmente), até à aparição da Internet, falar inglês é como uma condição inarredável do estar efetivamente no mundo.
A Internet é particularmente destacada por se confundir com a própria globalização; e, sobre as implicações do inglês nesta forma de envolvimento, Crystal cita um artigo de Michael Specter, publicado em abril de 96 no The New York Times:
Para estudar genética molecular, tudo o que você precisa para adentrar a Biblioteca da Universidade de Harvard, ou a biblioteca médica do Instituto Karolinska, da Suécia, é uma linha telefônica e um computador. E, é bom que se diga, um sólido domínio da língua inglesa. Porque, seja você um intelectual francês abordando a teoria do cinema, um paleobotânico curioso de fósseis descobertos recentemente, ou um adolescente americano que idolatra um astro da TV, a Internet e a WWW só trabalharão efetivamente como grandes pontes de contato se você for capaz de falar inglês.
Muito embora os benefícios de um idioma universal, não faltam os que se tomam de pânico face seus eventuais riscos. David Crystal alude aos franceses, possuidores de uma das línguas mais ricas do globo, mas que vêm tentando "protegê-la" por lei do que é entendido como uma maligna influência do inglês. Em contextos oficiais, agora é ilegal usar uma palavra inglesa onde já existe uma palavra francesa para o caso. A lei se aplica mesmo a palavras cujo uso é amplamente popularizado, como "computer" (os franceses obrigam o uso da palavra "ordinateur"). "Eles geralmente esquecem o fato de que o inglês, ele próprio, através dos séculos tomou emprestado milhares de palavras de outras línguas, e construiu milhares mais com elementos de outras línguas – incluindo a palavra computer, incidentalmente, que deriva do latim, a língua-mãe do francês."
A pressuposição errônea de que a globalização é como um barco no qual se decide embarcar ou não (enquanto nação ou Estado), aliás, sempre traz à reboque, como um dos argumentos para a negação, a idéia, ainda mais equivocada, de que valores culturais globais significariam um extermínio, não só da língua nativa, como dos valores telúricos de arte e civilização. Ora, parece-me que, ou bem o valor telúrico tem fundamento artístico e civilizatório vital, e neste caso sobrevive mesmo à avaliação pelos critérios internos de estilo, ou então a invasão de valores externos é uma bênção para o nativo terreno árido e estéril.
Como escritor, recebo regularmente algumas publicações do extremo oriente e posso me permitir uma exposição da conservação cultural e dos costumes em países que, por seu alto estágio de desenvolvimento tecnológico, constituem a própria "cara" da globalização.
Numa edição de fins de 1998, a revista japonesa NIPPONIA apresentava, lado a lado, duas reportagens sobre os brinquedos favoritos das crianças japonesas de hoje. E aí, se um artigo exibia o feitiço dos jogos eletrônicos e dos aparelhos digitais (o famoso Tamagochi; o aparelho de videogame NINTENDO64, de 64 bits, para uso doméstico; o portátil Game Boy Light), a outra matéria era dedicada exclusivamente ao kendama: um equivalente ao nosso conhecido bilboquê. Tendo chegado ao Japão através da China no século 18, na atualidade o brinquedo é inclusive objeto de campeonatos, classificando em categorias de destreza, como acontece com os jogadores de judô.
Por esta mesma época, a revista KOREANA (Korean Art & Culture) publicava um interessante ensaio sobre um acervo "anômalo" na arte coreana, o qual, embora marginalizado da abordagem dos historiadores de arte, continua exudando os sentimentos telúricos do livre-espírito de seus criadores. Para o autor do ensaio – Kang U-bang, Diretor do Museu Nacional de Kyongju – a questão envolve a confusão em torno dos conceitos de mot (charme artístico ou "tempero") e estilo (acadêmico): "Um charme artístico muito maior pode ser encontrado na vida simples do que nas obras de arte crismadas pelas elites. Afinal, as pessoas comuns se permitiam traços extraordinários e anômalos porque não tinham razão ou precisão de aderir às normas estabelecidas.". Exemplos dessa arte espontânea, analisados no desenrolar do ensaio, incluem figurinos em terra cotta do período de Shilla (57 A.C. - 935 D.C.), cerâmica punch'ong dos anos iniciais da Dinastia Choson (1392-1910), pinturas folclóricas e porcelana branca com decorações metálicas do final da mesma Dinastia – produtos imorredouros do telúrico humor e da ingenuidade dos coreanos que os criaram.
Pessoalmente, não entendo a globalização como uma invasão, uma intromissão estrangeira num território de qualquer forma caracterizado como meu. Sinto-me tentado mais ao conceito inverso: como uma livração de amarras nativas para todas as minhas formas de ser no mundo.
Antes que à interdependência econômica, meu conceito de globalização se prende à Informação. Sei que sou (sinto-me) um indivíduo globalizado quando, após o jantar, no retorno do trabalho, fumando um Gudang Garam diante do televisor, assisto ao vivo na CNN, às 19:49 horas do dia 16/12/98, o começo do primeiro ataque aéreo à Bagdá (00:49 horas de lá). Vejo as ruas da cidade, uma torre (mesquita?), uma elevada com modernas luminárias, o movimento de veículos (que poderia ser comparado ao da Av. Borges de Medeiros, à altura do bairro Praia de Belas de Porto Alegre, às 00:49 horas de qualquer sexta-feira, sábado ou domingo), e, então, o crepitar da bateria antiaérea e o entrecruzar de mísseis Tomahawk e antimísseis sobre a já bastante luminosa cidade iraquiana. Ao vivo. Em tempo real. Comprometido mesmo com o desenvolver do evento (da História). Participante dele.